Uma história de luta efetiva e afetiva pelos direitos de todas
Carta aberta às mulheres rurais que lutam e sonham com um mundo melhor
Meu nome é Rita Teixeira, sou do estado do Pará, no norte do Brasil, minhas origens sempre estiveram vinculados ao trabalho no campo e para o campo. Cresci e continuo a crescer pela agricultura. Tenho semeado e plantado desde sempre. Tenho realizações e dores. Entre as dores, a mais literal é a que tenho nas costas, em decorrência do trabalho (sempre pesado) no campo com meus pais. Mas a dor pela falta de direitos também é latente. Por isso, respiro profundamente e sigo em frente. Atravesso uma luta efetiva e afetiva.
Respondo a um convite do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), e faço isso com carinho e esperança, na forma de uma carta aberta. Resumo uma longa história de vinte anos no Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense (MMNEPA). Eu, Rita, dedico meus dias e minhas noites, entrego minha vida à materialização de uma sociedade justa e igualitária, onde as mulheres tenham direitos (como o acesso à saúde e o reconhecimento de seus saberes tradicionais) e políticas que garantam a sua integridade física, moral e cívica, bem como o acesso à terra, à água e a uma vida abundante.
Afinal, minha voz ressoa em muitas mulheres.
Luto não só porque nasci e cresci em um ambiente carente. Faço-o porque o conformismo não cabe em mim e porque não posso (nem quero) calar a minha voz interior... Afinal, minha voz ressoa em muitas mulheres. Em toda mulher rural que sente na pele o que eu sinto, e em todas as mulheres não rurais, urbanas, que, graças à empatia — essa habilidade tão feminina —, podem se colocar em nosso lugar e abraçar a nossa luta. A união feminina é fundamental.
Assim, juntamente com mulheres de diversas idades e instituições especializadas, comprometo-me a transformar a nossa realidade. Sonho com a reestruturação da sociedade patriarcal, a qual, acredito, é ainda mais violenta e injusta nos territórios que habito.
Uma ferramenta para alcançar a autonomia
Violência, urgência e injustiça. Transformação, direito, dedicação. Essa meia dúzia de palavras estão entre as mais comuns da minha fala e da minha vida. Estão em meu discurso, nos de minhas companheiras, em nossa pele, em nossos sonhos e em nossas rotinas. São feitas de dor e da vontade de mudar e prosperar, nutrem a esperança, a certeza de que é possível. Porque sim, podemos. Sabemos que temos o direito e não nos cansamos de buscar e experimentar ferramentas para alcançar a nossa liberdade e prosperidade. Os caminhos são diversos; cito aqui apenas um deles.
A “cartilha agroecológica” é um exemplo prático da possibilidade de evolução. Aparentemente, trata-se de algo muito simples: um caderno de anotações e de planejamento para a organização e o monitoramento do tempo, do investimento e dos ganhos financeiros de uma agricultora familiar.
Mas é muito mais do que isso: é um instrumento político e pedagógico que incentiva a agricultora a conquistar sua visibilidade, sua força e sua autonomia.
É um projeto do grupo de trabalho Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia com o Centro de Tecnologias Alternativas e a Universidade Federal de Viçosa (Minas Gerais) que dispõe do apoio da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e de Desenvolvimento Agrário (SEAD).
Esse instrumento foi criado após um ano de pesquisas de campo, na “Zona da Mata Mineira”, confirmando o poder e a força da produção feminina no chamado território da agricultura familiar. Em outras palavras, é uma ferramenta derivada da liderança das mulheres nas propriedades rurais agroecológicas do Brasil para as mulheres dos setores agroecológicos do Brasil.
É um caderno, mas também um espelho para que elas possam se ver como são: potentes. E, reconhecendo-se assim, poderosas, para viver dessa maneira.
É um caderno, mas também um espelho para que elas possam se ver como são: potentes. E, reconhecendo-se assim, poderosas, para viver dessa maneira.
Atualmente, os cadernos são utilizados nas cinco regiões do Brasil (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e, portanto, em todos os estados amazônicos.
Seu uso é monitorado e incentivado, bem como o intercâmbio de saberes e experiências das mulheres que as utilizam.
Dessa ação participam um total de mil mulheres, as quais agora se reconhecem não como “ajudantes” de seus maridos, mas como protagonistas e merecedoras de seus direitos. Graças aos cadernos, temos comprovado que as mulheres produzem quase o dobro dos homens. Mas, além disso: o “libreto” indica à agricultora a possibilidade ou não de fechar novos contratos, ou analisar a sazonalidade dos cultivos, os quais estão mudando em função das mudanças climáticas.
É importante destacar que o caderno não só melhora a autoestima feminina no âmbito trabalhista, mas também no pessoal. A emancipação social daquelas que aderiram ao formato é evidente.
Companheiras emancipadas
Recordo de maneira muito especial a história de uma companheira do estado do Amazonas, oriunda da localidade de Careiro Castanho: Dona Nega. Ela tem 49 anos e uma vida nova, conquistada com a ponta do lápis, no papel do caderno e na enxada. Ela se descobriu como uma mulher forte e que alcançou o conhecimento por suas experiências. O resultado foi a emancipação.
Dona Nega frequenta os seminários da Casa do Rio, entidade filantrópica do estado do Amazonas que promove a experiência da cartilha agroecológica. Dona Nega e seu caderno são aliados. Diariamente, ela anota suas realizações em seu caderno e em sua vida. Diariamente, ela planeja, sonha, nutre sua autoestima e sua sabedoria. Como a metodologia do caderno estimula a valorização dos “saberes naturais” ou “ancestrais” e, assim, proporciona (ainda mais) incentivo e confiança para que as mulheres façam a agricultura (e a vida) evoluir para algo mais cuidadoso, sem violência para a Terra, para elas, para o meio e para o ser humano. Tudo está relacionado a ciclos, à unidade, à nutrição e à saúde, em seus sentidos mais amplos (e femininos).
Depois do uso do caderno, essa agricultora ampliou de maneira impressionante não só seu poder de produção, mas também o de comercialização.
Lembro também da Dona Benedita, conhecida como Bena, na comunidade de Igarapé Mirim. É uma mulher de muitíssimo poder e êxito, uma mulher de luta. É, ela, uma liderança comunitária, uma referência e inspiração em seu município. Depois do uso do caderno, essa agricultora ampliou de maneira impressionante não só seu poder de produção, mas também o de comercialização. Ela vende seus produtos em casa, de porta em porta e em feiras. É incansável, admirável, compartilha seus saberes e soma-se a outras mulheres na luta por mais autonomia e emancipação.
Não poderia falar sobre mulheres inspiradoras sem mencionar e homenagear à agricultora Regiane Guimarães, líder rural assassinada em 1996. Sem dúvida, essa foi a maior perda e o maior pesar de nossa luta. Um homem a executou e, em seguida, foi executado por policiais. Violência atrás de violência, entretanto, os chefes do crime continuam impunes. Passaram-se mais de vinte anos, todos sabem quem são. E todas sabemos que eles querem exatamente o oposto do que queremos. Queremos que o nosso valor e o nosso potencial sejam reconhecidos, que os nossos direitos sejam reconhecidos.
Para isso, nos unimos. No decorrer da jornada, fica muito claro que união é sinônimo de poder. Se hoje eu sou assistente social, ativa, diplomada, é porque tive o apoio de muitas mulheres que acreditaram (e acreditam) em mim e, dessa forma, fizeram com que eu também acreditasse em meu potencial. Entre minhas realizações pessoais, meu diploma é a mais valiosa. E não é minha, mas de todas nós. Daí a importância de se reunir presencialmente e trocar experiências. Sentadas em roda, compartilhamos dúvidas e conhecimentos, nós nos damos umas às outras. É, repito, um processo afetivo e efetivo.
Nossas rodas, nossos encontros são espelhos. Uma maneira de nos vernos, de existir, evoluir.
A capacidade de mobilização e organização feminina não tem limites. E — veja bem — é a organização, é a luta, é a união. É a dor e a realização. A agroecologia também é uma mulher, é feminina. E, nesses territórios, a tão popular agroecologia já não é novidade, senão a única realidade. Sim, mais uma vez. Desta vez com êxito. Agora, imagine o quanto maior poderia ser esse êxito se houvessem políticas públicas de apoio ao desenvolvimento, projetos de capacitação e incremento. Imagine!
É bom sonhar e agir para transformar. Nossos cadernos contam com o apoio de instâncias como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Eles nos ajudam na comercialização dos produtos com preços justos. São apenas dois apoios. Imagine se fossem 20, 200 ou 2.000? O Brasil é grande.
Outras iniciativas também são essenciais nessa batalha, como: ANA (Articulação Nacional de Agroecologia), RMERA (Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da Amazônia). Sim, batalha. Porque não é fácil ter voz, muito menos nos fazer ouvir. Nós, as mulheres, entendemos que o diálogo (ter voz, se fazer ouvir, ouvir e fazer) é o caminho. E é simplesmente por isso que estou aqui, com minhas palavras e a luta e o sonho de todas as minhas companheiras e de todos os seus descendentes e antepassados.
Vale a pena sonhar
É claro que imaginar faz parte do plano e do sonho. Portanto, novamente, faço o convite: imagine uma realidade diferente, com essas palavras (e realidades) que escrevi (e repeti) aqui. Refiro-me à transformação, ao direito, à dedicação. Incluindo somente elas em seu pensamento. Nesse cenário, inclua água, terra, saúde, segurança. Mulheres políticas e na política (porque há uma clara diferença). Imagine a Regiane viva, a Dona Bene ainda mais próspera, a Dona Nega com uma autonomia ainda maior. Esse presente será melhor para todos. E, como parte do exercício, pense no presente e no futuro sem essa transformação que buscamos, sem as realizações de nossa luta. Pense em nós, mulheres rurais, pense em ti. Na sua mesa, na sua comida, no que te nutre, no que nos nutre. Não é uma cena fácil, certo? Eu sei.
Eu não sei se por causa da minha voz ou pela minha maneira de escrever, você percebeu isso... Sou negra, mulher, pobre. Recebo negativas com muita frequência, diariamente enfrento preconceito, supero adversidades. Sou a filha caçula de Dona Perpetua e do Senhor Teixeira, agricultores que, hoje, têm 78 anos. No início desta carta, comentei que vivemos de plantar e colher (frutos, conhecimentos, saberes, experiências etc.). Comecei cedo, ajudando meus pais e, depois, fui carregada pela energia as mulheres do nordeste do Pará, especialmente Dona Francisca, ou simplesmente Francia, minha amada professora e amiga de caminho e de vida.
O trabalho na agricultura exige sempre muitas horas de trabalho diárias e em minha família não foi diferente. Recordo muito bem quando plantávamos mandioca para fazer farinha, melancia, goiaba e pimenta. O trabalho começava às sete da manhã e terminava lá pelas cinco da tarde, com, no máximo, duas horas de descanso. Meus irmãos e eu sempre ajudamos nossos pais, carregávamos as mercadorias até o veículo que, por falta de acesso e boas rodovias, não chegava até a nossa casa. Também fiz diversos outros trabalhos no campo.
Desde muito cedo, compreendi a riqueza e a dor do campo. Percebi que o nosso poder, que o nosso valor não era reconhecido, que a mulher rural era forte, mas não era vista.
Desde muito cedo, compreendi a riqueza e a dor do campo. Percebi que o nosso poder, que o nosso valor não era reconhecido, que a mulher rural era forte, mas não era vista. Eu sou uma mulher rural e, se apareço nos espelhos que aqui tenho mencionado, se apareço no espelho de minha casa, se reflito minhas companheiras e elas se refletem em mim, isso prova que não sou invisível. Você, por exemplo, pode me ver. Você está me vendo por esse texto, por minhas palavras. Você pode ver a mim e a todas as mulheres rurais. Você pode nos ouvir, está nos ouvindo.
Agradeço que me ouçam. E espero a resposta. Quero, queremos, precisamos dialogar. Mas, por favor, não pela Internet, porque o acesso à comunicação é tão escasso por aqui quanto o acesso à água, à terra, aos direitos femininos…
Assim, convido você a essa transformação. Meu chamado é por um mundo ideal, assim como a minha luta, a nossa luta, também. Um mundo com alimentos livres de agrotóxicos, desigualdades, violência, injustiça. Tem a ver comigo, uma mulher nascida e criada no campo, para o campo, com elas, minhas companheiras, com você, com você. Com todxs (assim, com "x" para não denotar gênero). Pode parecer que está longe. Mas não está. Acredite! Nós acreditamos.
Muito obrigado.
Rita Teixeira
48 años