A publicação deste livro pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) e CORTEVA Agriscience, edição corrigida e ampliada em relação àquela lançada em 2018 em comemoração do Dia Internacional da Mulher Rural, tem um duplo propósito.
O primeiro e mais explícito é o de se prestar uma homenagem imprescindível a uma figura fundamental para a segurança alimentar e o progresso econômico e social do nosso continente.
O momento para esse reconhecimento é mais que oportuno, agora que boa parte do mundo está às voltas com um movimento contagioso e de grandes proporções que tornou visível um enorme problema: quase metade da sociedade é discriminada. Esse movimento, essencialmente urbano, chegou aos territórios rurais.
O segundo objetivo, mais ambicioso e que obriga a nossas instituições a uma atividade continuada e tenaz, é o de estimular a discussão pública necessária para incentivar a formulação e a execução de políticas de qualidade que melhorem a situação das mulheres que vivem no campo.
Estamos dando passos concretos nessa direção.
Indicadores, testemunhos e experiências de campo “gritam” a invisibilidade da mulher rural, que sofre com a falta ou acesso insuficiente à propriedade da terra, aos recursos produtivos, ao financiamento, à conectividade, à água potável, à educação e capacitação, à saúde e à justiça.
Na América Latina e no Caribe, quase 40% das mulheres que vivem no campo não têm renda própria, contra 14% dos homens na mesma situação. Menos de um terço das mulheres rurais, além disso, possui a titularidade da terra em que mora. No meio rural, existe também a ausência generalizada de reconhecimento aos diversos tipos de trabalho realizados pelas mulheres.
As mulheres rurais estão em desvantagem em relação aos homens que vivem no campo e às mulheres urbanas, e o estreitamento desses hiatos cabe não só aos governos, mas também à sociedade civil que deve se empenhar na solução do problema.
Essa tarefa requer, ainda, um trabalho de conscientização nos meios de comunicação de massa, promovendo-se a gestão e o interesse na abordagem de um tema sem espaço suficiente para se conseguir a formação de uma grande coalizão social transformadora da realidade.
Vistos desde o meio urbano, os estudos das relações de gênero em assentamentos rurais se assemelham a um retrato por daguerreótipo ou a uma foto em sépia produzidos na era contemporânea.
Revelam uma parte dessas relações, que se refletem em frases como “ela ajuda nas tarefas de campo” ou “ela não tem responsabilidades econômicas”, pinçadas no irretocável trabalho “Companheiras de luta ou coordenadoras de caçarolas?”, das pesquisadoras Maria das Graças Rua e Miriam Abramovay.
O certo é que as mulheres rurais, além de cumprir um papel fundamental no lar, também têm um peso muito grande nas tarefas produtivas. É dizer, são corresponsáveis pelo desenvolvimento produtivo e, para além disso, asseguram a estabilidade e a sobrevivência de suas famílias.
Apesar disso, os censos agrícolas confirmam o inegável estado de fragilidade social que tanto nos alarma, ao mostrar como a participação das mulheres na agricultura é subestimada, muitas vezes devido à omissão, até por elas mesmas, de seus nexos com a atividade agrícola em razão de se privilegiar os trabalhos domésticos.
Não obstante os avanços registrados nos últimos anos no empoderamento das mulheres e na atenção dispensada à igualdade de gênero, no meio rural elas continuam sendo as principais encarregadas do cuidado dos filhos e da casa, do preparo da comida e do suprimento de lenha e água. O trabalho doméstico não é reconhecido como trabalho. É considerado “natural e obrigatório”, e sua valorização é rara.
As mulheres que vivem em zonas rurais da América Latina e do Caribe são as que mais sofrem a disparidade social, política e econômica dos nossos países.
Torna-se necessário, então, incentivar a participação política das mulheres rurais para se visibilizar seus problemas e começar a resolvê-los por meio de sua genuína representação no seio de suas comunidades, nos parlamentos e nos governos nacionais, provinciais e municipais. O empoderamento tem a ver também com isso.
Em todos os âmbitos, o avanço sem precedentes das tecnologias da comunicação e da informação permite um intercâmbio extraordinário de ideias e reflexões em escala mundial. Este livro também é produto desses fenômenos, ao reunir, com foco no problema de gênero no campo, especialistas e personalidades dos cinco continentes.
Trata-se de uma convocação ampla, que fala da projeção global das iniciativas do IICA e da CORTEVA Agriscience e envolve a participação de pessoas de diversas áreas, sobretudo mulheres, que têm o privilégio de circular entre culturas, tendências e opções e que apresentam, no conjunto dessa obra, todos os lados e matizes da mesma história.
Os autores captam, descrevem, interpretam e transmitem realidades e, com elas, experiências, estados de ânimo, emoções, compromissos e pontos de vista, em artigos em que cabem a indignação, as histórias íntimas e familiares, mas, sobretudo, ideias e propostas, revelando fatos e dimensões que permaneceriam na opacidade não fossem a sensibilidade e o sentimento de liberdade que caracterizaram essa iniciativa.
As contribuições destacam reiteradamente a dívida pendente no tocante à participação econômica da mulher rural, repisam a necessidade de se garantir seu acesso pleno à educação, ao emprego, à propriedade, à saúde e à justiça, e a urgência de se favorecer seu envolvimento na tomada de decisões.
Nelas estão presentes reivindicações fundamentadas e apelos pertinentes à implementação de políticas públicas sólidas e de longo prazo que beneficiem as mulheres rurais. É que, sem uma atenção maior do poder público e da sociedade civil diante da situação de vulnerabilidade em que vivem, os hiatos se aprofundarão, e isso acarretará dolorosas consequências sociais.
Alguns dos autores colaboradores do livro sustentam que os desafios pendentes não estão condicionados a vultosos desembolsos de dinheiro público, mas a uma decidida vontade política neutralizadora da discriminação.
Chamam a atenção também para a ausência de incentivos às mulheres jovens para desenvolverem ideias inovadoras em seus locais de origem. Lembram que a migração da população rural responde à carência de serviços e que o arraigamento populacional depende diretamente das mulheres.
Insistem em que é imprescindível aproveitar e maximizar as oportunidades por meio das denominações de origem dos produtos agrícolas e da recuperação das artes e dos ofícios artesanais que a sustentabilidade consagrou como novos nichos de mercado.
São mensagens que estão em plena consonância com os eixos de trabalho e os programas do IICA em favor do desenvolvimento agropecuário e rural, porque questionam o lugar do setor agrícola nas agendas governamentais, instando a que lhe seja dada prioridade para a consecução de um desenvolvimento harmonioso e integrado.
Considerar prioritário esse objetivo é uma aposta segura, pois constrói cidadania e capacita recursos humanos mediante a formulação de planos estratégicos enriquecidos com a cooperação técnica internacional, uma das avenidas pelas quais transitam as relações internacionais. Além da dimensão solidária, essa cooperação tem a capacidade de impulsionar o desenvolvimento, ao incentivar a modernização do setor produtivo, a inovação da gestão pública e o comércio.
Os autores e as autoras deste livro também reforçam a necessidade de se entender a atividade agropecuária como capaz de criar oportunidades de progresso e agregação de valor, promovendo ações ousadas em busca de coesão social e territorial.
Outro chamado de atenção que atravessa os textos aqui reunidos, cuja singularidade e diversidade potenciam o conjunto e fazem desse livro um documento de grande relevância, é o que refere ao significado do enfoque de gênero.
Fica claro e estabelecido que não se alcança o componente feminino ou de equidade de gênero em um projeto ou em uma iniciativa qualquer. Tampouco se trata apenas de aumentar neles a participação das mulheres. O verdadeiro enfoque de gênero requer a incorporação da experiência, do conhecimento, dos interesses e das necessidades das mulheres com o objetivo de empoderá-las.
Este é o caminho indicado a ser percorrido para se transformar o que consideramos estruturas sociais e institucionais desiguais em estruturas igualitárias e justas para homens e mulheres.
Outro ponto relevante destacado, no contexto de urbanização acelerada e crescente em nosso continente, é a necessidade de se realçar a importância estratégica das áreas rurais como cenário insubstituível para a transformação produtiva, ancorado na competitividade, na inclusão e no desenvolvimento da ciência e da tecnologia e tendo a sustentabilidade como horizonte.
Esta obra contribui também para o preenchimento de lacunas nas informações sobre os problemas que afetam as mulheres rurais, carências que restringem a análise e limitam a extensão da consciência social sobre os problemas que enfrentam.
Sua publicação oferece novos elementos e maior precisão sobre o que são e como vivem as mulheres rurais latino-americanas, adultas e meninas: com baixo nível de escolaridade e alto percentual de analfabetismo, sobrecarregadas de trabalho, com renda nula ou magra, trabalhadoras informais e temporárias, com escassa cobertura dos sistemas de proteção social, com possibilidades mínimas de acesso à propriedade da terra, à tecnologia e ao conhecimento técnico, e duplamente discriminadas no caso das mulheres rurais indígenas.
É imprescindível e urgente, levando-se em conta os avanços alcançados, caminhar mais rapidamente e chegar mais longe. A meta é o cumprimento cabal do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 da ONU, "Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas". Essa conquista depende dos governos, dos organismos internacionais e das nossas sociedades.
Uma das obrigações das democracias modernas é a criação de mais e novos espaços para que as camadas da população que são discriminadas deixem de sê-lo. Uma maneira de abri-los é acender os refletores sobre essas questões para que possam ser compreendidas, passo inicial da transformação. Esta nova edição de Lutadoras – Mulheres rurais no mundo oferece todas as ferramentas para isso, e esta é justamente a sua contribuição mais importante.
As palavras-chave são empoderamento e equidade. Este é nosso objetivo. Esta publicação, uma conjunção estreita de conhecimento e vontade, é, antes de tudo, uma contundente estratégia para alcançá-lo.
Nós do IICA agradecemos a resposta imediata e solidária das personalidades que contribuíram para tornar este livro realidade. Essa resposta é uma demonstração clara da corresponsabilidade assumida por todos os prestigiosos participantes e compromete ainda mais o Instituto na grande associação de luta pela visibilidade da mulher rural.
Esta publicação também constitui um ponto de partida que reposiciona o IICA em um tema fundamental para o desenvolvimento sustentável da nossa América e que deve ser seguido de projetos transformadores que melhorem as condições de empoderamento e equidade. O cumprimento desses objetivos depende de todos nós.