Quatro propostas para empoderar a mulher rural e acabar com a insegurança alimentar
Ainda temos tempo para trabalhar nas principais dimensões da segurança alimentar
Segundo uma antiga anedota da indústria de desenvolvimento, há muitos anos uma equipe de inspeção viajou para uma comunidade rural para controlar um projeto de irrigação. Ao chegar, encontraram apenas mulheres brandindo picaretas e pás, enquanto outras empurravam carrinhos de areia e pedras. “Onde estão os homens contratados para cavar os canais?”, perguntou um visitante. “Estão jogando ao futebol contra outra comunidade”, respondeu uma mulher. “E como vocês estão trabalhando?”, quis saber o inspetor, perplexo. “Não estamos trabalhando. Estamos apenas ajudamos”, foi a resposta, sem nenhuma ironia.
O conto poderá ser apócrifo, mas encerra mais que um vestígio de verdade. As contribuições econômicas das mulheres de zonas rurais costumam ser sistematicamente subestimadas. Nas zonas rurais da América Latina e do Caribe há cerca de 58 milhões de mulheres. Segundo dados oficiais, cerca de 17 milhões delas estão economicamente ativas, mas apenas 4,5 milhões são consideradas produtoras agrícolas. Numerosos peritos concordam que geralmente há uma redução significativa no registro, dado que os trabalhos agrícolas realizados por mulheres costumam ser computados como tarefas domésticas não remuneradas. Por mais arduamente trabalhem cuidando de hortas, criando aves ou moendo milho, seus esforços tipicamente não são valorizados como parte da produção rural.
Além do erro e da injustiça que essa subestimativa representa, a falta de reconhecimento do valor do trabalho das mulheres rurais destaca outro aspecto da desigualdade de gênero: os homens que se dedicam à agricultura dispõem de maior acesso a terras, crédito, tecnologias e serviços de extensão do que as mulheres. Isso explica o hiato na produtividade entre os gêneros. Em minha região, por exemplo, as mulheres recebem apenas 10% dos empréstimos para agricultura. Mas segundo alguns cálculos, se elas tivessem o mesmo acesso a recursos que os homens, as mulheres poderiam aumentar sua produção rural significativamente.
Tal aumento contribuiria em boa medida para reduzir outro persistente desafio: a insegurança alimentar, fenômeno que ocorre quando parte da população carece de acesso a comida suficiente para cobrir suas necessidades e levar vidas saudáveis e ativas. Que isso ocorra em nossa região pode parecer paradoxal, dado o nosso fenomenal potencial agrícola. Apesar de ser a única região do mundo a alcançar o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio de reduzir a fome à metade entre 1990 e 2015, a quantidade de pessoas que padecem de insegurança alimentar aumentou. Essa aparente contradição ocorre porque as melhorias em produção alimentar na América do Sul superaram as do resto da região, elevando a média geral. De fato, entre 2015 e 2016, a quantidade de pessoas que padecem de fome aumentou em 2,4 milhões, alcançando um total de 42,5 milhões na região, uma quantidade semelhante à população da Argentina.
Essa preocupante tendência semeia dúvidas sobre nossas probabilidades de alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de eliminar a fome em 2030. Pior ainda, a região enfrenta a chamada “carga tripla” da desnutrição: a presença simultânea da desnutrição, da deficiência de micronutrientes e da obesidade. Esses problemas acarretam todo tipo de complicações, desde limitar o desenvolvimento cognitivo na infância até aumentar a incidência de doenças crônicas, como a diabetes ou o câncer, que já estão inflando os custos de nossos sistemas de saúde.
No entanto, ainda há tempo para trabalhar nas principais dimensões da segurança alimentar: a disponibilidade, o acesso, a utilização e a estabilidade. Além disso, ao empoderar as produtoras rurais de nossa região para que maximizem seu rendimento, poderíamos alcançar nossas metas mais rapidamente.
Disponibilidade alimentar
A disponibilidade alimentar em nível local ou nacional depende da produção agrícola e da importação. Em nossa região, as mulheres desempenham um papel fundamental na disponibilidade, participando em cada uma das etapas da produção, processamento e distribuição dos alimentos. No entanto, a falta de tempo para tais trabalhos pode limitar sua participação na produção agrícola, gerando maiores desigualdades de gênero. A disparidade no acesso das mulheres à mão de obra, terra, capacitação e tecnologias prejudica ainda mais a sua produtividade e eficiência. Logicamente, uma diminuição do hiato de gênero ao acesso a contribuições e recursos produtivos aumentaria a disponibilidade de alimentos e reduziria a fome.
Para alcançar esses objetivos, devemos promover ações específicas que incentivem a participação feminina em programas produtivos, os quais devem oferecer assistência técnica com um enfoque de gênero. Isso implica fixar certos objetivos sobre a quantidade de mulheres participantes e oferecer capacitação agrícola que leve em conta suas necessidades específicas em termos de idioma, acessibilidade, tempo e periodicidade. Os projetos de titulação de terras deveriam ser uma linha de ação chave. Eles devem ser projetados e implementados de modo de promover a equidade e a igualdade de gênero mediante: (i) a promoção de instituições que protejam o acesso equitativo de homens e mulheres à terra; (ii) o fornecimento de informações às mulheres sobre seus direitos e deveres jurídicos em relação aos bens imóveis; e (iii) a promoção da copropiedade de terras entre cônjuges.
Acesso a alimentos
Ainda que haja alimentos suficientes disponíveis em âmbito local ou nacional, uma família pode sofrer de insegurança alimentar, se carecer de meios econômicos para obter comida. A pobreza e a disparidade de receitas entre homens e mulheres constituem riscos típicos ao acesso a alimentos. Em nossa região, as mulheres chefe de família sofrem maiores índices de pobreza do que os homens. Em zonas rurais, de acordo com organizações internacionais, isso se deve em grande parte ao fato de 40% das mulheres maiores de 15 anos não receber remuneração por seus trabalhos, que com frequência incluem atividades agrícolas. Naturalmente, aumentar as receitas das mulheres e reduzir o hiato salarial entre gêneros pode ajudar a melhorar o acesso a alimentos.
Com essa finalidade, devemos considerar duas grandes linhas de ação. Em primeiro lugar, devem ser promovidas mais atividades rurais produtivas remuneradas para as mulheres, por exemplo, expandindo seu acesso ao crédito e oferecendo capacitação sobre atividades de produção e comercialização. Em segundo lugar, devemos gerar mais oportunidades econômicas para as mulheres, ampliando sua participação trabalhista, observando o hiato salarial e de receitas entre gêneros e promovendo o acesso a empregos de melhor qualidade para mulheres em zonas rurais. Por exemplo, o empreendimento feminino em zonas rurais pode ser promovido por capacitações e programas de certificação que ajudem também a reduzir a discriminação de gênero.
Utilização dos alimentos
Historicamente, as mulheres têm desempenhado um papel indispensável para garantir a nutrição e o bem-estar de suas famílias, especialmente em zonas rurais onde são as principais cuidadoras e estão tradicionalmente a cargo da escolha, preparação e provisão de alimentos. No entanto, as mulheres também enfrentam maiores desafios com relação à nutrição, particularmente com a obesidade. Em nossa região, o índice de obesidade feminina é de 26,8%, contra 18,5% no caso dos homens. Essa tendência se mostra especialmente preocupante no Caribe, onde o índice de obesidade feminina é quase quatro vezes maior do que o masculino. Empoderar as mulheres é fundamental para melhorar os resultados nutricionais. De fato, o empoderamento feminino se relaciona a melhorias na diversidade da dieta familiar, à nutrição materno-infantil e a outros indicadores de desenvolvimento inicial.
Por isso devemos elaborar e implementar intervenções nas áreas de agricultura, água e saneamento e proteção social visando melhorar a nutrição e empoderar as mulheres. Por exemplo, os programas de desenvolvimento rural deveriam incluir ativamente as mulheres em sua implementação, elevando sua posição social e econômica. Entretanto, os programas de proteção social deveriam estabelecer metas baseadas em índices de nutrição e saúde feminina. Além disso, é necessário promover projetos que induzam mudanças de condutas que conduzam a dietas saudáveis e à redução do excesso de peso e da obesidade, principalmente em mulheres e crianças, os quais constituem a população mais afetada. Finalmente, é essencial aumentar o acesso à água potável em zonas rurais.
Estabilidade alimentar
A estabilidade alimentar significa que a oferta não será ameaçada por variações imprevistas nos preços ou no clima. As medidas para garantir um fluxo alimentar estável se mostram particularmente importantes para o bem-estar das populações mais vulneráveis, que geralmente coincidem com as mais afetadas por imprevistos, pois carecem de mecanismos efetivos para estabilizar o consumo de alimentos. Isso é especialmente relevante no caso das mulheres, que são os membros da família mais propensos a reduzir seu consumo ante uma repentina escassez.
Para garantir a estabilidade alimentar, devemos elaborar e implementar instrumentos com um enfoque de gênero que reduza a vulnerabilidade dos sistemas alimentares à mudança do clima e aos desastres naturais. Também devemos melhorar a capacidade dos institutos nacionais de pesquisa agrícola para desenvolver e divulgar variedades melhoradas de cultivos comumente plantados por mulheres que sejam mais resistentes à mudança do clima. Deve-se incentivar as mulheres a ocupar papéis ativos em associações de usuários de água e a participar das decisões com respeito à irrigação em suas comunidades. Finalmente, devemos elaborar intervenções de gestão de risco de desastres com atividades especialmente destinadas a mulheres.
Em resumo, a evidência demonstra que empoderar as mulheres aumenta a segurança alimentar. A partir de agora, os programas de desenvolvimento rural deveriam combinar esses objetivos. Além disso, os formuladores de políticas devem procurar incluir as abordagens de gênero em todos os programas destinados às populações rurais. Finalmente, para projetar e implementar intervenções sólidas, são necessários dados de qualidade, desagregados por gênero, para medir as necessidades e as contribuições das mulheres relacionadas à segurança alimentar. Estou seguro de que, se fizermos bem as coisas e empoderamos a mulher rural, chegaremos a ver o fim da fome em nossa região.
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