Mulheres rurais – uma perspectiva de gênero
Desempenham um papel decisivo na meta da União Europeia de chegar à fome zero e erradicar a pobrezaA igualdade de gênero e o empoderamento da mulher são prioridades centrais da União Europeia (UE). Em 2015, a UE adotou um novo âmbito de transformação para abordar a igualdade de gênero nas relações externas da UE e em sua cultura institucional chamado Plano de Ação em Matéria de Gênero 2016-2020 (GAP II, por sua sigla em inglês). A Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a qual constitui a base da agenda de cooperação da UE para o desenvolvimento, tem uma política de incorporação transversal do gênero, enquanto um objetivo específico (o ODS 5) está orientado para alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas. O GAP II responde a esse objetivo.
Na agenda da UE, a segurança alimentar e nutricional mundial é de alta prioridade. As mulheres rurais, cujos papéis e responsabilidades são múltiplos e complexos, são atores essenciais para produzir, processar e comercializar alimentos, prepará-los para o consumo nos lares e manter a segurança nutricional nestes. Elas têm o potencial de aumentar a produtividade, o que permite aumentar as receitas; e contam, além disso, com os conhecimentos necessários para diversificar seus meios de vida em épocas de estresse. Em resumo, as mulheres rurais desempenham um papel decisivo para alcançar a meta da UE de chegar à fome zero e erradicar a pobreza rural. Apesar de seu grande potencial não aproveitado, as mulheres rurais enfrentam muitas barreiras para aumentar a produtividade agropecuária e alcançar a segurança alimentar e nutricional de suas famílias. Contam com menos acesso que os homens aos recursos produtivos, menos informações e menos possibilidades de tomar decisões por conta própria. Sua função reprodutiva faz com que as mulheres e as meninas enfrentem mais riscos de insegurança nutricional que os homens e os meninos.
As mulheres rurais respondem por metade da produção de alimentos do mundo e por até 80% da produção na maior parte dos países em desenvolvimento. Estima-se que 7 em cada 10 das pessoas famintas no mundo são mulheres. Além disso, as mulheres possuem menos de 15% das terras em todo o planeta e menos de 2% das propriedades nos países em desenvolvimento; embora realizem dois terços do trabalho no mundo, recebem apenas 10% das receitas mundiais. É por isso que a desigualdade de gênero não é só um problema das mulheres, mas também da produtividade agropecuária, da segurança alimentar e do desenvolvimento rural. As mulheres rurais não constituem um grupo homogêneo. Seus papéis e contribuições para a sociedade diferem, bem como suas necessidades e interesses, dependendo de sua idade, suas origens, do tamanho e da composição de sua família e a idade de seus filhos. No entanto, uma característica comum a todas elas é a discriminação, embora em grau variável. As políticas de âmbito mundial consideram a igualdade de gênero como um objetivo estratégico, e as políticas de desenvolvimento rural da UE convertem a transversalidade do gênero na diretriz que rege a Política Agrícola Comum da UE, bem como o Programa de Desenvolvimento Rural.
No cerne dessas desigualdades estão as normas sociais que discriminam em razão do gênero, as quais se refletem em atitudes, comportamentos, políticas e leis que limitam as mulheres e as meninas. É por isso que o GAP II exige um enfoque transformador que não só procure melhorar o acesso das mulheres aos recursos, mas também lhes garante a igualdade de direitos. Desnecessário dizer que um enfoque transformador que tende a melhorar a vida das mulheres e meninas rurais nos setores da agricultura e a segurança alimentar e nutricional deve vir acompanhado de esforços em outros setores que garantam seus direitos, inclusive os relacionados à sua saúde sexual e reprodutiva.
A fim de produzir essa transformação social, precisamos de uma análise sistemática de gênero fundamentada em evidências geradas a partir de dados distribuídos por sexo e cuidadosamente compilados com o objetivo de explorar as tendências discriminatórias que deixam as mulheres em situação de desvantagem. Os papéis que as mulheres rurais desempenham na agricultura, na segurança alimentar e nas cadeias de nutrição do mundo em desenvolvimento são complexos e variam segundo muitos fatores, como sua condição socioeconômica, a localização geográfica, a idade, a condição reprodutiva, a educação, a religião e o grupo étnico. As generalizações correm o risco de simplificar demais os relatos sobre a vida das mulheres rurais. Além disso, as tendências passadas e emergentes, como a mudança do clima, a migração, os surtos de doenças, a comercialização e o aumento das tecnologias, a globalização e o conflito podem alterar o comportamento de homens e mulheres.
Em geral, as mulheres são as principais provedoras de atenção às crianças, idosos e enfermos. Muitos acreditam que esse trabalho subvalorizado de cuidados, dentro da economia reprodutiva, mantém as mulheres pobres e que o valor desse trabalho não remunerado deve ser avaliado e reconhecido adequadamente. No entanto, devemos destacar que, dados os conhecimentos das mulheres rurais sobre seu entorno natural, seu habitat e seus recursos naturais, elas desempenham um papel importante na resiliência do lar e na busca de uma agricultura climaticamente inteligente. Quando dispõem de oportunidades, as mulheres rurais podem ser empreendedoras industriosas, capazes de administrar agronegócios bem-sucedidos que aportam receitas importantes para a efetivação da segurança alimentar e nutricional do lar. Os papéis agrícolas e empreendedores das mulheres complementam seu papel de fornecedoras de alimentos e nutrição. Sua contribuição para a nutrição infantil é iniciada na gravidez, uma vez que a desnutrição costuma começar no útero e continuar pelo período de amamentação e por toda a vida da criança. Seu predomínio na agricultura de subsistência, em contraposição ao que exercem os homens, nos cultivos comerciais, as converte em guardiãs da segurança alimentar do lar, encarregando-se em geral de cozinhar e preparar as comidas da família. Nos lares rurais pobres, cujas receitas e segurança alimentar podem ser afetados por eventos extremos, como a volatilidade dos preços, secas, inundações, catástrofes naturais ou conflitos, as mulheres podem se ver obrigadas a conceber medidas de curto prazo para alimentar suas famílias, como deslocamento local, migração e venda de gado.
As mulheres e as meninas rurais também são as principais coletoras de lenha para cozinhar e de água para uso doméstico e de consumo humano e animal. Estas podem ser tarefas pesadas e que implicam jornadas frequentes e arriscadas longe do lar, as quais podem ficar ainda mais longas, conforme os recursos naturais se esgotam cada vez mais. Como consequência de seus múltiplos papéis de fornecedoras de alimentos e cuidadoras domésticas, as mulheres rurais costumam carecer de tempo para atividades mais produtivas. Essa tendência é conhecida comumente como a “carga de trabalho” das mulheres ou sua “pobreza de tempo”. Os papéis das mulheres rurais são afetados, tanto positiva como negativamente, pela constante transformação rural que está ocorrendo nos países em desenvolvimento no mundo todo. Foi iniciado um processo de mudança social conforme as economias rurais se diversificam, reduzem sua dependência da agricultura, alcançam mais acesso à informação, graças à tecnologia da informação e das comunicações, fortalecem seus nexos com as zonas urbanas e se tornam mais móveis, sobretudo pela migração dos homens jovens. Essa mudança pode empoderar as mulheres rurais, conforme elas assumem maiores responsabilidades dentro e fora das propriedades rurais, enquanto os homens passam para empregos no agrícolas ou emigram em busca de receitas alternativas. Além disso, assumir mais responsabilidades também pode aumentar a pesada carga de trabalho das mulheres rurais e deixá-las inclusive com menos tempo para elas e suas famílias.
Por que os direitos sobre terras/propriedades para as mulheres importam
Em termos gerais, se for aumentado o acesso, o controle, a gestão e o uso da terra por parte das mulheres, isso terá um efeito positivo em suas vidas e no bem-estar de suas famílias e comunidades. Isso também redundará em um benefício de longo prazo para o seu país e a sociedade em geral.
Os direitos assegurados sobre terras/propriedades contribuem para a concretização dos direitos humanos fundamentais. O acesso equitativo das mulheres à terra ajuda a garantir o respeito aos direitos humanos fundamentais, inclusive os direitos à alimentação adequada, ao abrigo, à não discriminação e à igualdade; ao direito de não ser desalojado; e ao direito à tutela judicial efetiva etc. Além disso, os direitos assegurados sobre terras/propriedades podem ajudar a proteger as mulheres contra a violência.
A evidência sugere que a posse de bens imóveis por parte das mulheres, bem como sua participação na administração das terras, estão associadas a uma maior capacidade para se livrar de relações violentas; a posse segura lhes oferece segurança econômica, sobretudo às mulheres vulneráveis, como viúvas, idosas, divorciadas ou afetadas por HIV/AIDS.
Os direitos assegurados à terra poderiam ajudar a aumentar os investimentos agrícolas e a melhorar a produtividade agropecuária. Reconhece-se a necessidade de mais evidência empírica para medir a relação positiva entre uma posse segura da terra e a produtividade agropecuária. No entanto, há muita concordância de que a existência de direitos assegurados constitui um fator crítico que favorece a produtividade agropecuária, juntamente com outros elementos que costumam estar estritamente vinculados à disponibilidade de terras cuja posse é segura, como o acesso ao crédito, aos suprimentos de insumos, à tecnologia e aos serviços de extensão, entre outros.
Dado que as mulheres enfrentam mais restrições que os homens para a posse segura de terras, elas encontram mais dificuldades do que os homens para tomar decisões sobre sua utilização efetiva e produtiva. Por exemplo, as mulheres frequentemente enfrentam limitações para tomar decisões com respeito a cultivos, pois os homens tendem a usar a terra mais produtiva para cultivos comerciais de maior valor.
Além disso, as mulheres poderiam ter um acesso mais limitado à mão de obra, carecer de conhecimentos e tecnologias adequadas e ter uma pesada carga de trabalho que lhes impõe restrições temporais que prejudicam ainda mais a sua produtividade. Se for permitido às mulheres desfrutar eficazmente de um acesso seguro à terra e lhes for concedida mais voz sobre quais cultivos plantar, que contribuições utilizar, o que vender e como gastar ou investir as receitas, seu trabalho poderia ajudar a efetuar melhores investimentos nas propriedades rurais, a aumentar a produtividade agropecuária e, em última instância, a alcançar maiores ganhos com a terra.
Por conseguinte, os direitos assegurados sobre terras/propriedades são fundamentais para melhorar a segurança alimentar e a nutrição e podem melhorar a segurança alimentar e nutricional do lar, bem como os investimentos familiares. Existe evidência de que as mulheres que dispõem de direitos mais seguros sobre terras/propriedades realocam a despesa da família de maneira que melhora o consumo de alimentos e permite responder a outras necessidades básicas, por exemplo, contribuir para melhorar a condição sanitária e nutricional de seus filhos.
Os direitos assegurados sobre a terra podem melhorar a voz e a participação da mulher. As mulheres das zonas rurais, especialmente as quais vivem em sociedades mais tradicionais, costumam depender das decisões dos homens. Elas podem carecer do direito a votar ou a participar das decisões comunitárias, porque não são consideradas coo membros qualificados da comunidade. Inclusive em comunidades que incluem as mulheres na tomada de decisões comuns, o direito da mulher ao voto pode estar solapado por regras de procedimentos, como as que permitem apenas um voto por família, que automaticamente cabe ao chefe de lar, que costuma ser homem. É fundamental derrubar as barreiras à participação e fortalecer a voz das mulheres para ajudá-las a defender seus direitos, tanto dentro de suas comunidades como também quando atores/fatores externos ameaçam as terras comunitárias.
Entre esses fatores externos, o fenômeno da aquisição (em grande escala) de terras (tomada de terras) por atores – sejam nacionais ou internacionais – que não pertencem à comunidade e que reclamam terras com fins comerciais representa um desafio particularmente crítico, sobretudo para as mulheres indígenas, que lutam pelo reconhecimento de seus direitos. Embora o impacto varie de um contexto a outro, é amplamente aceito que as mulheres têm mais probabilidade do que os homens de se ver negativamente afetadas por esse fenômeno porque, em geral, são mais vulneráveis como grupo. Nessas circunstâncias, as mulheres costumam ser excluídas das consultas e negociações sobre a transação de terras. Além disso, nos casos em que a terra comunitária é redistribuída depois da concessão de parte dela, as mulheres têm mais probabilidade do que os homens de ser excluídas dessa redistribuição ou de que lhes sejam dados lotes de terra menos produtivas.
Se as mulheres desfrutarem de um direito mais seguro à terra, podem melhorar sua capacidade para exercer sua “voz” e “voto” nas decisões que afetem o uso e o controle de sua própria terra e/ou das terras comunitárias. No entanto, para que a participação das mulheres seja significativa, deve-se ir além de sua simples presença nas reuniões, de maneira que tenham tanto o espaço como os conhecimentos para falar sem riscos, como a segurança e a capacidade para defender seus direitos. Quanto mais informadas estejam as mulheres de seus direitos, maiores serão suas possibilidades de participar da tomada de decisões.
Para concluir, a UE continua sendo um parceiro forte e um líder mundial na promoção da igualdade de gênero, do empoderamento das mulheres e do desenvolvimento sustentável, tanto dentro como fora da UE, o que se estende às mulheres rurais de ambas as áreas geográficas. Isso é importante não só para essas mulheres, mas também para suas famílias, comunidades e países.
Combater a violência de gênero com a iniciativa Spotlight
Em setembro de 2017, a UE e a Organização das Nações Unidas (ONU) lançaram em conjunto a iniciativa Spotlight, com um investimento inicial de EUR 500 milhões. Seu objetivo consiste em eliminar todas as formas de violência contra as mulheres e as meninas no mundo todo. As mulheres rurais algumas vezes estão desproporcionalmente expostas aos riscos da violência de gênero, que abrange desde infanticídios até feminicídios, violações e assassinatos brutais, bem como práticas nocivas, como a mutilação genital feminina, o matrimônio infantil, a violência doméstica e familiar, o tráfico de pessoas e a exploração sexual e econômica (trabalhista).
Na UE já identificamos as regiões da África, Ásia, América Latina, Pacífico e Caribe nas quais implementaremos nossas ações e projetos focalizados; já identificamos as formas de violência mais prevalentes que devem ser atacadas e, agora, estamos convertendo nossas políticas de combate à violência de gênero em programas para países selecionados, no que trabalhamos em colaboração com o governo, a sociedade civil e outros atores locais fundamentais.
A iniciativa Spotlight propõe tirar a violência das sombras e colocá-la no foco da atenção, abordando-a em todas as suas manifestações no mundo todo, com o objetivo de criar um mundo em que todas as mulheres e meninas possam se sentir empoderadas para caminhar livremente e de cabeça erguida, sem perigos e com dignidade.