Mulheres rurais e a Agenda 2030
na América Latina e no Caribe:
um olhar pelo mercado de trabalho
Muitas das mulheres rurais só conseguem empregos precários e mal remunerados
Durante a década atual, a CEPAL posicionou a igualdade como valor fundamental do desenvolvimento e como princípio ético irredutível. A desigualdade não é apenas injusta mas também ineficiente, pois gera e sustenta instituições que não promovem a produtividade nem a inovação. Além disso, a discriminação fecha oportunidades que também representam trajetórias de aprendizado e de inovação favoráveis à produtividade. As desigualdades de gênero, traço estrutural da América Latina, são o mais claro exemplo disso. Elas implicam uma distribuição desigual do poder, dos recursos, do tempo e da riqueza entre homens e mulheres e estão na base da insustentabilidade do estilo de desenvolvimento dominante. O desafio é avançar para uma mudança estrutural progressiva que contribua para transformar as relações de poder de gênero nas dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento sustentável e ações que articulem os desafios de curto e longo prazo.
Em âmbito global, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável Nº 5 (ODS 5) da Agenda de Desenvolvimento 2030 estabelece a aspiração de “Alcançar a igualdade entre os gêneros e empoderar todas as mulheres e meninas”. Para avançar nessa direção, são propostas metas em meios de implementação relacionados ao empoderamento econômico das mulheres (5.a), ao uso de novas tecnologias (5.b) e ao desenvolvimento de estruturas jurídicas e de políticas que promovam a igualdade de gênero e o empoderamento em todos os níveis (5.c).
No âmbito regional, a Estratégia de Montevidéu para a Implementação da Agenda Regional de Gênero, aprovada em 2016, na XIII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, propõe um roteiro para avançar com passo firme na direção proposta pelo ODS 5. Desatar os nós críticos da desigualdade de gênero é uma questão de justiça e uma condição necessária para passar de uma cultura de privilégios para uma cultura de direitos e de igualdade. A cultura de privilégios se expressa na hierarquização e valorização do masculino e cristaliza, reproduz e perpetua as relações desiguais de poder entre homens e mulheres.
Os números disponíveis sobre a situação trabalhista das mulheres na área rural indicam que os hiatos de gênero na participação e na taxa de ocupação em detrimento das mulheres são muito mais acentuadas do que nas zonas urbanas. Isso se deve às dificuldades maiores que as mulheres têm para conseguir um emprego em comparação com os homens, bem como à invisibilidade das trabalhadoras rurais que cumprem atividades familiares não remuneradas ou produtoras para o autoconsumo, não são captadas como ocupadas nas pesquisas.
Com uma atribuição tradicional dos papéis de gênero mais rígida, as mulheres estão restritas ao âmbito e tarefas vinculadas à reprodução. Assim, muitas mulheres rurais são consideradas trabalhadoras secundárias, que, em última instância, complementam as receitas do lar. Esse papel se reflete na maior participação das mulheres em empregos agrícolas temporários. Consequentemente, muitas das mulheres rurais conseguem apenas empregos precários e mal remunerados, passando assim a fazer parte do contingente de “pobres que trabalham”, ou seja, trabalhadoras cujos salários não lhes permitem satisfazer suas necessidades mínimas, apesar das extensas jornadas de trabalho. Essa situação não apenas exacerba a precariedade das atuais condições trabalhistas dessas mulheres, mas dificulta seu acesso futuro à seguridade social.
Neste artigo, são examinadas tendências regionais relacionadas ao empoderamento das mulheres rurais, a partir de sua participação no mercado de trabalho , que constitui um mecanismo de empoderamento econômico. A evidência é de chiaroscuro.
Uma primeira tendência é o aumento da proporção de lares rurais chefiados por mulheres, observada em quase todos os países que dispõe de informações comparáveis. Se tomarmos isso como um indicador de empoderamento econômico, a tendência é positiva, especialmente nas zonas rurais, pois, entre 2002 e 2014, a região registrou um aumento de 40% na proporção de lares rurais encabeçados por mulheres (CEPAL-FAO-IICA, 2017). No entanto, os lares chefiados por mulheres podem ser mais vulneráveis aos choques econômicos e em risco de pobreza, especialmente quando a receita da mulher é a única do lar ou quando essa provém de fontes não trabalhistas (por exemplo, transferências, inclusive remessas). As informações disponíveis sobre a distribuição de empregos rurais evidenciam isso. Mais da metade dos lares encabeçados por mulheres são classificados como inativos, enquanto de 25 a 30% apresentam um emprego remunerado não assalariado (CEPAL-FAO-IICA, 2017). Além disso, a proporção de mulheres rurais chefes de família ainda é baixa, menos de 25% na maioria dos países (CEPAL-FAO-IICA, 2017). Isso provavelmente reflete as normas sociais regionais quanto aos papéis de gênero, pois são os homens que geralmente assumem o papel de chefia, inclusive quando tanto os homens como as mulheres aportam economicamente para o bem-estar total do lar.
A tendência ao aumento na chefia feminina ocorre independentemente da redução da pobreza que se tem observado entre os lares rurais desde os princípios do século. A evidência indica que estaria mais vinculada à mudança estrutural no meio rural, que se manifesta na contração do setor agrícola e posterior expansão de setores não agrícolas. Estimativas a partir das informações disponíveis (CEPAL-FAO-IICA, 2015) indicam que, quanto mais a ocupação no setor agrícola se retrai, maior é o aumento da chefia feminina rural. Além disso, a idade média das chefes de famílias rurais se reduziu, com um marcado aumento na proporção dos lares rurais com chefia feminina no grupo de mulheres com menos de 35 anos (CEPAL-FAO-IICA, 2015); uma tendência que é mais marcada nas zonas rurais do que nas zonas urbanas. Isso é relevante, pois se trata de uma faixa etária na qual os papéis de gênero associados aos cuidados da família pesam menos e, portanto, a mulher goza de maior independência para estabelecer seu próprio lar.
A segunda tendência relevante é o aumento nas taxas de emprego rural das mulheres. Nas últimas décadas a ALC mostrou avanços consideráveis no ODS 5, apresentando importantes avanços na paridade de gênero em educação, saúde e participação na força de trabalho. O aumento da taxa de participação feminina na força de trabalho regional foi o maior do mundo; e essa tendência foi mais pronunciada no âmbito rural (CEPAL-FAO-IICA, 2015). Os aumentos foram maiores que as taxas de emprego nacionais e, com poucas exceções, foram observados em todas as faixas etárias . No entanto, os perfis de emprego das mulheres rurais por faixas etárias apresentam diferenças significativas (segundo sejam remunerados, por conta própria, como empregadora ou como familiar não remunerada), que também mostram indícios de papéis de gênero.
No grupo mais jovem, a principal categoria de emprego na maioria dos países é como assalariadas não agrícolas; e uma parcela significativa está empregada como familiares não remuneradas (mais de 20% em diversos países). Ao passar para a faixa etária intermediária (35-60 anos), apresenta-se uma transição para o emprego por conta própria, sobretudo nos setores não agrícolas. Em idades mais altas, há uma nova redução de emprego assalariado não agrícola, bem como maiores aumentos do emprego por conta própria, tanto agrícola como não agrícola.
Esses perfis são congruentes com a expansão das oportunidades de emprego para as mulheres mais jovens, como resultado da expansão do setor não agrícola. Também sugerem que, conforme as mulheres envelhecem e assumem papéis mais tradicionais, por exemplo, nos cuidados da família, elas têm mais probabilidades de abandonar o mercado de trabalho formal e participar de atividades mais informais ou de desenvolver empreendimentos próprios, que possam conciliar com seus papéis de provedoras de cuidados.
Embora não existam números detalhados, há uma clara tendência das mulheres rurais para ingressar no mundo do trabalho por empreendimentos próprios. De acordo com os números de censos agropecuários de alguns países, a proporção de mulheres que são chefes de exploração gira em torno de 25%. Isso implica que são elas que tomam as decisões técnicas e comerciais e, em muitas ocasiões, realizam a maior parte do trabalho produtivo. No âmbito do trabalho por conta própria, de natureza mais informal, os empreendimentos são de naturezas diversas e se desenvolvem paralelamente às suas atividades de cuidados da família; por exemplo, estufas com hortaliças, elaboração de produtos alimentares processados, artesanatos, vendas em feiras locais, empreendimentos turísticos, entre outros. A diversidade de negócios é ampla e, em geral, percebe-se um traço comum: tais empreendimentos funcionam com êxito graças ao impulso, à prolixidade e à disciplina com que são executados. É por isso que as mulheres rurais estão atraindo cada vez mais atenção dos bancos de desenvolvimento e dos programas públicos para promover o empreendedorismo produtivo.
O desafio global e regional para 2030 requer desatar os nós da desigualdade de gênero. Trata-se de transitar da desigualdade socioeconômica e do crescimento excludente para estilos de desenvolvimento que assegurem uma igualdade substancial entre homens e mulheres; de se avançar de uma rígida divisão sexual do trabalho e uma injusta organização social dos cuidados para a redistribuição do tempo, dos trabalhos e das oportunidades; de mudar os padrões culturais patriarcais, discriminatórios e violentos e o predomínio da cultura de privilégios, encaminhando-nos para uma cultura de direitos e igualdade; bem como de mudar a concentração do poder para uma democracia igualitária.
As tendências destacadas sugerem a necessidade de políticas para apoiar os lares chefiados por mulheres, bem como para aumentar o empoderamento das mulheres e a paridade de gênero. Para isso, os governos devem assegurar que as mulheres possam adquirir as mesmas habilidades e desfrutar de salários semelhantes aos dos homens, em condições de trabalho equivalentes.
Maior educação, acesso a recursos financeiros e conhecimentos (meta 5.a) aumentarão o empoderamento e a independência das mulheres, especialmente nos lares chefiados por elas. No entanto, embora muitos países tecnicamente proporcionem igualdade legal às mulheres, a aplicação de tais proteções é, muitas vezes, débil. Assegurar que as mulheres tenham direitos iguais e, tão importante quanto, que sejam conscientes desses direitos aumentará o empoderamento das mulheres e melhorará a paridade de gênero a curto e longo prazo. Com uma maior proteção legal, as mulheres terão maior controle sobre os recursos financeiros. Isso beneficiará a próxima geração de meninas, pois quando as mulheres têm um maior controle dos recursos do lar, direcionam mais dinheiro para a educação e a saúde das meninas.
Também é importante melhorar a paridade no local de trabalho (meta 5.c). Isso incluiria a igualdade de remuneração e mecanismos de conciliação trabalhista, por exemplo, em aspectos relacionados a licenças maternidade e paternidade. O primeiro aumenta o incentivo para que as mulheres ingressem na força de trabalho, conforme aumenta o custo de oportunidade de tempo. O segundo reduz a preferência de uma empresa para empregar homens, uma vez que cada empregado terá benefícios parentais equivalentes.
A promoção do emprego feminino requer a consideração de políticas que fomentem a permanência e a finalização dos estudos das mulheres rurais para aumentar sua produtividade, promover a visibilidade das mulheres como trabalhadoras (formalizando as relações trabalhistas, por contratos de trabalho), fortalecer as políticas e os serviços de cuidados no campo e promover uma distribuição mais equilibrada do trabalho doméstico não remunerado entre homens e mulheres.
À luz do processo de mudança estrutural no meio rural, também deveriam ser desenvolvidos programas de capacitação para que as mulheres possam aproveitar as oportunidades que surjam no crescimento dos setores não agrícolas. A aquisição de habilidades, seja pela educação formal ou pelos programas de desenvolvimento de capacidades, é relevante para aa adoção de novas tecnologias e inovações, para ter acesso a postos de trabalho mais bem remunerados, dentro e fora da agricultura, e para facilitar a reconversão produtiva. A aquisição de habilidades adicionais contribui, em última instância, para reduzir a pobreza e a desigualdade rural no longo prazo.
A introdução de novas tecnologias (meta 5.b) é uma via para motivar o desenvolvimento de novos empreendimentos por parte das mulheres e da população mais jovem e qualificada, pois sua disposição para adotar novas tecnologias é maior do que entre os homens e a população de maior idade (CEPAL-FAO-IICA, 2011). Uma característica importante das novas tecnologias — sobretudo das novas tecnologias da informação e da comunicação — é que elas podem permitir saltar etapas em termos de desenvolvimento tecnológico, abrindo “janelas de oportunidade” para as economias rurais e, em particular, para as mulheres.
Ao anterior, se devem agregar ações em muitos outros âmbitos (meta 5.c) que transcendem no que diz respeito ao empoderamento econômico; por exemplo, ações destinadas a melhorar a autoestima, reduzir a violência intrafamiliar, reconhecer seu papel como guardiãs de sementes tradicionais, evidenciar seus papéis nas estatísticas dos programas públicos, assegurar sua participação em instâncias da sociedade civil e, em geral, sua participação em âmbitos de direção tanto de empresas agropecuárias como de organismos do Estado. Além disso, o elevado nível de inatividade entre as mulheres rurais chefes de família maiores de 60 anos destaca a importância das políticas de proteção social no meio rural, com relevante foco na proteção das mulheres (meta 5.c).
As mulheres rurais da região estão alcançando avanços, mas a tarefa é imensa e requer muito mais. A aspiração do ODS Nº 5, de alcançar a igualdade entre os gêneros e empoderar todas as mulheres e meninas no meio rural, é um imperativo ético, uma questão de justiça e uma condição necessária para passar de uma cultura de privilégios para uma cultura de direitos e de igualdade também nas zonas rurais da América Latina e do Caribe.
1 Coyuntura Laboral de America Latina y el Caribe, No 14, CEPAL/OIT, Mayo 2016.
2 Los datos presentados derivan de procesamientos especiales de encuestas de hogares realizados por la CEPAL para los capítulos de bienestar rural de los dos últimos informes conjuntos CEPAL-FAO-IICA sobre las perspectivas de la agricultura y del desarrollo rural en América Latina y el Caribe (CEPAL-FAO-IICA, 2015 y 2017).
3 Se identifican tres grupos de edad que podrían caracterizarse como población activa joven (menores de 35 años), fuerza de trabajo adulta (de 25 a 60 años) y población en edad de retiro (mayores de 60 años).